O pior desastre com navios petroleiros em décadas

MSc. Carlos Camargo, da Login Logística, escreve um artigo técnico, publicado na revista do CCMM – Centro de Capitães da Marinha Mercante, sobre um grave acidente ocorrido em 2018.

O pior desastre com navios petroleiros em décadas

5.500 ANOS DE NAVEGAÇÃO E OS ACIDENTES CONTINUAM OCORRENDO

De acordo com as informações do Museu Marítimo de Santos (2020), as primeiras embarcações que se tem notícia foram retratadas pela arte egípcia há pelo menos 5.500 anos, confundindo-se com a invenção da escrita na antiga Mesopotâmia. Em outro extremo da esfera temporal, a tecnologia e a inovação foram capazes de descobrir a eletricidade (século XVII), proporcionar avanços significativos na astronomia e física, a façanha de enviar uma nave tripulada à lua no século XX e possibilitar sonhar com uma viagem a Marte no século XXI.
Entretanto, apesar desses feitos memoráveis e 5.500 anos de experiência do Homem na navegação, acidentes continuam a ocorrer. Quando falamos de acidentes com navio, imediatamente pensamos que um dos fatores foi estarem navegando em lugares pequenos, “apertados” como rios ou Baías.
Em 2018, ocorreu um gravíssimo acidente com dois navios (“CF CRYSTAL” abalroou o navio “SANCHI”) em uma área de 3.500.000 Km² que definitivamente não pode ser classificada como “pequena” ou “apertada”. Recentemente, a OCIMF (SAFETY4SEA, 2020) classificou o acidente com o navio tanque SANCHI como “o pior acidente com navios tanque em décadas”. Para piorar, o relatório elaborado foi inconclusivo e dessa forma, o que realmente ocorreu talvez nunca saibamos. Felizmente, o corpo técnico da OCIMF gerou um Boletim com recomendações que possibilitam destacar temas importantes para que evitemos a recorrência deste sofrível acidente.

Fragmentos do relatório do acidente
De acordo com o relatório da OCIMF(OCIMF, 2020), por volta de 1950LT (1150 UTC) em 6 de janeiro de 2018 na posição 30° 51.1’N / 124° 57,6’E no Mar da China Oriental, o navio tanque “SANCHI” (164.160 toneladas DWT) foi abalroado pelo navio graneleiro “CF RYSTAL” (75.725 toneladas DWT). O “SANCHI” estava carregado com óleo condensado tendo partido do porto de
Assaluyeh (Irã) com destino ao porto de Daesan (Coreia do Sul). O “CF CRYSTAL” por sua vez, possuía uma carga de grãos (sorghum) a granel tendo partido do porto Kalama (EUA) com destino ao porto de Dongguan (China). O abalroamento partiu os tanques de carga do “SANCHI” ocasionando um incêndio, seguido de fortes explosões e consequente naufrágio do navio tanque. Já o “CF CRYSTAL” sofreu extensos danos estruturais na proa, bem como outros danos em virtude do incêndio que atingiu outras áreas de bordo. Infelizmente, foram contabilizadas 32 vítimas a bordo do “SANCHI”, 3 das quais confirmadas como mortas e 29 declaradas desaparecidas. O graneleiro “CF CRYSTAL” foi rebocado para um porto próximo, sendo que todos os seus 21 tripulantes foram salvos. O acidente foi classificado como “very serious marine casualty” conforme definido no “IMO Code of International Standards and Recommended Practices for a Safety Investigation into a Marine Casualty or Incident” de acordo com a Resolução IMO MSC.255(84) “Adoption of
the code of the International Standards and Reccommended practices for a safety investigation into a marine casualty or marine incident – Casualty Investigation Code”.
O incêndio (Figura 1) perdurou por mais de 1 semana causando danos irreparáveis à estrutura do navio tanque o que resultou seu naufrágio tornando-se no pior derramamento de óleo dos últimos 30 anos. O “SANCHI” transportava 111.000 toneladas (810.000 barris) de condensado – um óleo ultraleve e altamente inflamável e sua maior parte evaporou após o incêndio. Estima-se que 1.941 toneladas de HFO também estavam nos tanques de armazenamento de combustível do “SANCHI” (SAFETY4SEA, 2020).

Como consequência, o acidente criou quatro grandes manchas que juntas cobriam uma área total de 100 quilômetros quadrados, o que é quase equivalente ao tamanho da cidade francesa de Paris, poluindo praias e devastando a indústria pesqueira local. A devastação foi tamanha que atingiu ilhas do sul do arquipélago japonês conforme anúncio feito pela guarda costeira daquele país.

Importante destacar que após o abalroamento, com base em consultas feitas de forma cooperativa entre as autoridades marítimas da China (MAS China – Maritime Safety Administration), Irã (Islamic Republic of Iran), Panamá e Hong Kong, redigiram um acordo de cooperação sobre a investigação do acidente em 25 de janeiro de 2018. O acordo deixou claro que a Autoridade Marítima Chinesa, o principal Estado investigador, seria responsável pela apresentação da versão final do relatório de investigação à IMO, disponibilizando-o ao público.

O que ocorreu?

De acordo com as informações do Insurance Maritime News, o comitê que investiga a abalroamento entre o navio tanque iraniano “SANCHI” (IMO 9356608) e o navio graneleiro “CF CRYSTAL” (IMO 9497050) na costa da China, não chegou a um consenso quanto as causas do acidente. O relatório foi produzido por autoridades marítimas da China, Hong Kong, Irã e Panamá.
As partes que compuseram a investigação concordaram sobre os fatos básicos, incluindo as propriedades da carga, identificação da tripulação, hora do abalroamento e a metodologia empregada na investigação do acidente, mas surgiram diferenças quanto a causa raiz do acidente. Investigadores chineses disseram que a responsabilidade recaiu sobre o navio tanque “SANCHI” já que ambas as embarcações envolvidas estavam em rumo de abalroamento. De outro lado, os investigadores iranianos e panamenhos culparam o “CF CRYSTAL” por não ter efetuado a mudança de rumo. A China, que liderou a investigação, apresentou o relatório da investigação à IMO. O relatório não fez recomendações sobre possíveis responsabilidades ou penalidades para nenhuma das partes.
A investigação foi baseada em gravações de áudio e entrevistas com membros sobreviventes da tripulação do “CF CRYSTAL”. Foi descoberto que erros de ambas as tripulações levaram ao abalroamento, com cada tripulação negligenciando o uso de equipamentos de bordo e deixando de tomar decisões quanto ao rumo e velocidade. Há indícios que o “SANCHI” reportou um “near miss” com uma embarcação de pesca no mesmo dia, quando o 3º oficial (Segundo piloto) ignorou um alerta de rádio de um pesqueiro. Fato é que o relatório é simplesmente inconclusivo.

À guisa de informação, considerando os rumos e informações do relatório oficial, de acordo com a figura abaixo (CAPTAIN PARANI, 2020) observa-se o rumo de abalroamento e o tempo disponível para a manobra necessária para evitar o sinistro.

Nota
Rumo do SANCHI” (vermelho) e do “CF CRYSTAL” (azul), a cor magenta indica as marcações relativas dos navios demonstrando que praticamente não houve alterações de rumo significativas. Ou seja, o risco de abalroamento foi aceito por ambos os navios desde o início.

A proa do “CF CRYSTAL” abalroou o “SANCHI” precisamente por BE entre seus tanques de lastro #2 e #3 gerando uma abertura entre os tanques de carga #2 e #3 por BE. Quando o abalroamento ocorreu o “CF CRYSTAL” estava no rumo 226º e o “SANCHI” com o rumo 358º (Figura 2). Dessa forma, o ângulo do abalroamento foi de 48º. Esse ângulo de “contato” (Figura 3) é consistente com as inspeções feitas nos navios, conforme foto abaixo feita pela autoridade Chinesa.

Recomendações da OCIMF (OCIMF, 2020)
A OCIMF, de forma muito profissional e altruísta, emitiu um boletim nesse ano destacando a importância de verificação dos níveis de consciência / atenção / prontidão e familiaridade, os quais os tripulantes necessitam possuir, em especial os relacionados a esse trágico acidente que ceifou a vida de tantos marítimos. Este boletim de segurança é baseado em fatos, fatores contributivos e aprendizados identificados no relatório de investigação oficial do abalroamento entre o “SANCHI” e o “CF CRYSTAL” e também se baseia na análise feita por membros da OCIMF e das informações disponíveis nos documentos oficiais de referência. O boletim de segurança não buscou, de forma alguma, atribuir culpa ou responsabilidade a quem quer que seja pelo incidente. Abaixo as principais partes do Boletim de Segurança da OCIMF.

Fatores que contribuíram para o acidente

Navegação

  1. Não cumprimento do RIPEAM – Regulamento Internacional para evitar Abalroamento no Mar, 1972.
    a. Ambas as embarcações falharam em cumprir a Regra 5 (vigilância), Regra 7 (risco de abalroamento) e Regra 8 (manobras para evitar a abalroamento, do RIPEAM);
    b. O “SANCHI” falhou em cumprir a Regra 15 (situação de rumos cruzados) e a Regra 16 (ação da embarcação obrigada a manobrar) do RIPEAM;
    c. O “CF CRYSTAL” falhou em cumprir a Regra 17 (Ação da embarcação que tem preferência) do RIPEAM);
    d. Uso impróprio do AIS como auxílio à navegação / prevenção de colisões;
    e. Ambas as embarcações dependiam excessivamente do AIS para identificar, monitorar e avaliar o risco de abalroamento;
    f. O “CF CRYSTAL” usou o AIS como único meio de informação para evitar colisões;
    g. Não utilização do ARPA, radar ou outros meios apropriados para monitorar o alvo e o risco de abalroamento;
    h. Alteração de rumo para BE feita pelo “CF CRYSTAL” 16 minutos antes do abalroamento . O Imediato afirmou que fez pequenas alterações de rumo de 217° para 225° a 9 minutos do abalroamento com o intuito de trazer o navio de volta ao rumo original.

Gerenciamento de Passadiço (BRM – Bridge Resource Management)

2. Evidências de que os princípios do BRM, como discussão de ações de forma a proporcionar conscientização, familiaridade, entendimento comum das opções de prevenção à colisões, disponíveis, não foram praticados a bordo;

3. Os procedimentos de passagem de serviço de quarto a bordo do “CF CRYSTAL” não eram robustos como o Imediato reportou em sua passagem de quarto para sua rendição: “Sem tráfego algum a vante”.


Fatores Humanos

4. Há sérios indícios que indicam não ter ocorrido uma efetiva gestão da equipe de passadiço;

5. A decisão de chamar o Comandante foi tomada tarde demais pelo Oficial de Serviço (OOW – Officer on Watch ) no “SANCHI”;

6. A recomendação feita pelo vigia (lookout) ao OOW de serviço que estava no passadiço do “SANCHI” foi ignorada;

Fatores Secundários

7. Discrepâncias: Foram encontradas discrepâncias entre as informações do AIS sobre os dados do Course Over Ground (COG) e a Speed Over Ground (SOG) recebidas por outras embarcações em comparação com o que foi transmitido do “SANCHI” – até 25º em COG e 3 nós em SOG;

8. Distrações: O OOW do “SANCHI” desviou a atenção da equipe, discutindo assuntos não relacionados a navegação, no camarim de cartas.

9. Relutância: O OOW do “SANCHI” relutou em identificar uma situação de risco com embarcação de pesca (avistada por seu BE) e consequentemente em adotar as medidas necessárias para evitar o abalroamento. O OOW no “SANCHI” esperava que a embarcação menor adotasse medidas para evitar rumos de colisão, apesar de ser ele o responsável pela manobra (RIPEAM).

Lições Aprendidas

10. Os OOWs devem estar perfeitamente cientes de que equipamentos como AIS e ECDIS são equipamentos de auxílio à navegação. O propósito do AIS é o de auxiliar a identificar embarcações, auxiliar no rastreamento de alvos e em operações SAR, simplificar a troca de informações e fornecer informações adicionais para auxiliar na visão geral das proximidades e assim contribuir para a devida tomada de decisão. Importantíssimo mencionar que são ferramentas / equipamentos adicionais e não devem substituir o uso dos Radares / ARPAs e marcações visuais para a prevenção de abalroamentos;

11. O uso dos auxílios eletrônicos à navegação não exime o OOW de sua responsabilidade de cumprir o RIPEAM em todos os momentos, e utilizar todos os demais meios disponíveis para a tomada de decisão;

12. Conscientização e familiaridade com os procedimentos de gravação/backup das informações do Voyage Data Recorder (VDR) – as limitações do VDR e os procedimentos associados para fazer o “backup” dos dados do VDR devem ser completamente compreendidos, assimilados e treinados, de modo a garantir que o máximo possível de dados relevantes estejam disponíveis após qualquer acidente. Isso garante que as causas e os aprendizados de todos os acidentes sejam extraídos da forma mais ampla possível;

Nota aos inspetores SIRE

13. Este acidente destaca a importância do cumprimento do RIPEAM e da adesão às melhores práticas e procedimentos de navegação. A equipe de gerenciamento de passadiço (BRM) deve ter um alto nível de conhecimento e familiaridade com os auxílios à navegação e outros equipamentos constantes no passadiço. Para que este boletim de segurança atinja seu objetivo, os inspetores precisam estar familiarizados com as melhores práticas, orientações e regulamentações atuais da indústrias relacionadas a todas as áreas de operação do navio;

14. Os inspetores devem observar que o SIRE VIQ aborda as questões destacadas neste boletim por meio de perguntas no capítulo 4 (Navegação). Em particular, aborda a conscientização e familiaridade dos oficiais e da tripulação do navio com equipamentos como AIS, ECDIS, Navtex, ecobatímetro, agulhas magnéticas, giroscópicas e práticas de navegação. Os inspetores devem, ao responder às perguntas no capítulo 4 do VIQ, verificar o conteúdo das ordens permanentes do Comandante, incluindo referências aos requisitos mínimos do CPA.

Conclusão
Apesar do 5.500 anos de experiência em navegação que a Humanidade possui, ainda somos falhos em evitar que acidentes como esse ocorram. Cabe a nós OOWs contribuirmos para que o conhecimento / experiência sejam repassados aos mais novos, bem como zelar para que a tripulação do navio esteja apta a lidar com situações como essa, reduzindo o tempo de tomada de decisão e dessa forma evitar os acidentes.
Na próxima edição, abordaremos os 100 anos do acidente com o Titanic (1912) que coincidiu com o acidente do Costa Concórdia (2012) e tentaremos responder a seguinte pergunta: O que falta para melhorarmos nosso desempenho ?

Bibliografia

1. SAFETY4SEA. Sanchi: The world´s worst oil tanker disaster in decades. 2020. Disponível em: . Acesso em 08 de setembro de 2020;

2. SAFETY4SEAa. Report on the Investigation of the collision between M.T. SANCHI and M.V. CF CRYSTAL in the East China Sea on 6th January 2018. Very Serious Marine Casualty. 10th May 2018.. Acesso em 08 de setembro de 2020

3. OCIMF. OCIMF Safety Bulletin Sanchi and CF Crystal Collision Incident. London: OCIMF, 2020;

4. RESPONSEK. The navigation Response Newsletter. It´s not just the what, it is also the who, where, when and why. February 2018. Disponível em: . Acesso em 08 de Setembro de 2020.

5. LLOYD´S LIST. Sanchi Timeline. Disponível em: . Acesso em 08 de setembro de 2020.

6. LANDSTRÖM, Björn. El buque. 3.ed. Barcelona: Editora Juventud, 1983.

7. CAPTAIN PARANI. Through the Captain´s window. Sanchi vs Crystal Collision: A study. Disponível em: . Acesso em 08 de setembro de 2020;

8. INSURANCE MARINE NEWS. Investigating countries divided on cause of Sanchi´s disaster. 2018. Disponível em: . Acesso em 08 de setembro de 2020.

9. MUSEU MARÍTIMO DE SANTOS. Os primórdios da navegação. 2020. Disponível em: . Acesso em 09 de setembro de 2020;

10. IMO. Code of the International Standards and Recommended Practice for a Safety Investigation into a Marine Casualty or Marine Incident (Casualty Investigation Code) (IMO Resolution MSC.255(84);

11. IMO. Revised Guidelines for the Onboard Operational Use of Shipborne Automatic Identification Systems (AIS) (IMO Resolution A.1106(29);

12. Sanchi-CF Crystal Official Investigation Report (Maritime Safety Administration of P.R. China, 10 May 2018).

*MSc. Carlos Camargo é Mestre em Sistema de Gestão (UFF); Diplomado em Safety Management (British Safety Council); Pós Graduado em Gerenciamento de Crises Corporativas (UGF), Gerenciamento de Riscos (UFRJ) e Engenharia de Petróleo (UNESA). Vinte e dois anos de experiência na indústria marítima e offshore no exercício de funções de gestão em grandes companhias como Maersk, Fronape, Halliburton, V. Ships, OGX, Du Pont, Ibama (Licenciamento Ambiental) e Bureau Veritas.

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